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O crime de condicionamento de atendimento médico-hospitalar de emergência à luz dos princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade do Direito Penal


Por Anna Paula Cavalcante G Figueiredo em 18/09/2019 | Penal | Comentários: 0

Tags: Direito Penal, Principios de Direito Penal.

 

O Direito Penal é uma ciência jurídica norteada por alguns princípios, dentre os quais temos o da subsidiariedade e o da intervenção mínima.

Em sucinta análise, o princípio da intervenção mínima traz a ideia de que o Direito Penal deve ter uma aplicabilidade restrita, resguardada a situações excepcionais, quando outros ramos menos gravosos da ciência jurídica não apresentarem uma tutela apta e eficaz ao bem jurídico tutelado. Por isso diz-se que a justiça criminal é de ultima ratio.

E, da concepção da intervenção mínima surge a ideia da subsidiariedade das normas penais, que somente podem intervir no seio da sociedade quando medidas civis ou administrativas mostrarem-se ineficazes. O Direito Penal “deve servir como a derradeira trincheira no combate aos comportamentos indesejados, aplicando-se de forma subsidiária e racional à preservação daqueles bens de maior significação e relevo” [1].

Art. 135-A do Código Penal e a criminalização da conduta de condicionar o atendimento médico-hospitalar emergencial

O art. 135-A foi inserido pela Lei n. 12.653/2012, ao Código Penal e tem a seguinte redação:

Código Penal
Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial
Art. 135-A. Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial:
Pena — detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte.

O tipo penal em comento busca extinguir situação corriqueira em hospitais, clínicas médicas e demais estabelecimentos de saúde do país, quando da necessidade de socorro médico de emergência. Diga-se, que “diante da crescente mercantilização da medicina, é mesmo lamentável que se tenha chegado à necessidade de haver uma tipificação penal nesse sentido, sendo o primeiro dever dos médicos salvar vidas humanas” [2].

A obediência da conduta típica aos preceitos constitucionais da subsidiariedade e da intervenção mínima do direito penal

O crime previsto no art. 135-A, do Código Penal é um bom exemplo da estrita observância dos princípios da subsidiariedade e intervenção mínima, vez que a sua inserção no ordenamento jurídico pátrio se deu após a verificação da ineficácia das leis civis e regulamentações administrativas para coibir a prática da conduta ora tipificada.

Lamentavelmente a exigência de garantias e preenchimento de formulários administrativos para o acesso ao atendimento médico emergencial era (e ainda é!) uma prática constante no país. Tudo em prol da necessidade de se garantir o pagamento das despesas hospitalares daquele que fosse atendido pelo socorro emergencial.

Temos, pois, valores a serem sopesados. O primeiro, o do adimplemento contratual, que permite à iniciativa privada valer-se de instrumentos legais para efetuar a cobrança pertinente aos serviços prestados. De outro lado, tem-se o direito à saúde, à vida e à incolumidade física da pessoa humana, que em face de uma situação emergencial não deve ter seu atendimento médico negado ou postergado em razão de circunstâncias que visam unicamente garantir interesses patrimoniais dos estabelecimentos privados.

Mas, lembre-se que a saúde é um dos direitos e garantias fundamentais sociais insculpidos no art. 6º, caput, da CF/88 [3]. E, assim sendo, deve ser compreendida como um daqueles direitos cuja competência para proteção e oferecimento compete ao Estado.

Aliás, da leitura do art. 197, da CF/88, conclui-se que é da competência do Poder Público a regulamentação, a fiscalização e o controle das atividades de atenção à saúde, sejam elas executadas pelo próprio Poder Público ou pela iniciativa privada. Veja bem, ainda que prestada pela iniciativa privada, a assistência à saúde não deve ser concebida como uma mercadoria comum posta no mercado.

E, é exatamente neste aspecto que a criação do tipo penal inscrito no art. 135-A, do Código Penal, mostra-se mais que adequada. Isso porque disposições anteriores à Lei n. 12.653/2012 já traziam a vedação das condutas agora tipificadas no Código Penal; mostrando-se incapazes de coibir, com eficácia, a prática do condicionamento do atendimento emergencial à saúde. Veja-se.

O art. 39 do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990) traz a vedação de práticas consideradas abusivas. Dentre tais, no inciso IV, o legislador veda ao fornecedor de produtos e serviços “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços”. Ademais, segue o legislador dizendo no art. 51, IV [4], do mesmo diploma legal, que são nulas de pleno direito as cláusulas abusivas verificadas em contratos de prestação de serviços ou fornecimento de mercadorias.

Ora, os estabelecimentos de saúde da rede privada prestam serviços àqueles que os procuram no afã de receber atendimento, havendo ali clara relação de consumo. Dessa maneira, o dispositivo legal consumerista anteriormente destacado pode ser interpretado como uma vedação à prática de que o serviço médico-hospitalar seja prestado de forma a se aproveitar da situação de saúde emergencial do consumidor, por exemplo. Nesse sentido, já decidiu o TJMG o seguinte: “(...) A exigência de cheque como caução para internação hospitalar em favor da apelante trata-se de prática abusiva, nos termos do art. 51, IV do Código de Defesa do Consumidor. (...)” [5].

Certo é que a lei consumerista não foi suficiente para rechaçar a conduta. E em função da persistência destas práticas, em 2002, com o Novo Código Civil, o tema foi retomado. A partir da inteligência do art. 104 c/c 156, ambos do Código Civil, conclui-se que é anulável o negócio jurídico celebrado em estado de perigo, pois verificado vício de consentimento. O estado de perigo é verificado quando o agente “premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa” [6].

Nos termos do art. 171, II, do Código Civil, é anulável o negócio jurídico celebrado em estado de perigo, pois pautado em nítida afronta ao princípio da boa-fé objetiva, de primordial observância para a regularidade contratual. Assim, caso em estado de perigo o agente submeta-se a pagar uma prestação excessivamente onerosa em contrapartida a um atendimento hospitalar de emergência, imperioso que se reconheça a anulabilidade do contrato celebrado.

Indubitavelmente, a imposição desta sanção cível demonstra que ao legislador interessa vetar a celebração de contratos em que se aproveite da fragilidade de uma das partes em momento determinado. Para Carlos Roberto Gonçalves se constitui em claro exemplo de estado de perigo aquele em que a “pessoa que se vê compelida a efetuar depósito ou a prestar garantia, sob a forma de emissão de cambial ou de prestação de fiança, exigida por hospital para conseguir internação ou atendimento de urgência de cônjuge ou de parente em perigo de vida” [7].

Configurada, portanto, a segunda manifestação de sanção cível imposta àqueles estabelecimentos de saúde que privilegiam seus interesses patrimoniais em detrimento da efetiva e imediata atenção à saúde. Mas, lamentavelmente, tais vedações e sanções cíveis também não se mostraram suficientes para coibir os atos abusivos do mercado de saúde.

Surgiu, então, a necessidade de se fazer uma Regulamentação Administrativa, trazendo maior força à lei civil. E aqui temos a Resolução Normativa n. 44/2003 da Agência Nacional de Saúde Suplementar. A razão de ser desta resolução era proibir, expressamente, que o atendimento à saúde fosse precedido da exigência de garantias patrimonialistas. Nesse aspecto, diz o artigo 1º da Resolução Normativa n. 44/2003, da ANS, o seguinte:

Resolução Normativa n. 44/2003, da ANS
Artigo 1º. Fica vedada, em qualquer situação, a exigência, por parte dos prestadores de serviços contratados, credenciados, cooperados ou referenciados das Operadoras de Planos de Assistência à Saúde e Seguradoras Especializadas em Saúde, de caução, depósito de qualquer natureza, nota promissória ou quaisquer outros títulos de crédito, no ato ou anteriormente à prestação do serviço.

Note-se: a resolução administrativa apresentada já vedava a exigência de garantias para a realização de procedimentos de urgências desde o ano de 2003. E, em 2012, isto é, passada mais de uma década, tal regulamentação ainda não se mostrava plenamente eficaz para o combate desta postura repugnante que é privilegiar interesses econômicos em detrimento do resguardo e proteção da vida humana.

Bem, de fato, todas essas normatizações cíveis e administrativas não foram capazes, com efetividade, de coibir a conduta agora tipificada pelo Código Penal. Por isso, a adequação do tipo aos princípios penais da subsidiariedade e da intervenção penal mínima Decerto, a reprimenda criminal foi apresentada pelo legislador pátrio somente após outras searas da ciência jurídica, menos lesivas, não lograrem êxito na proteção das pessoas que em situação de emergência se vêm diante de práticas abusivas cometidas por instituições prestadoras de saúde no país.

 

 

* Este artigo é uma adaptação do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado pela autora como um dos requisitos para a aquisição do título de Especialista em Direito Penal.

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Notas:

[1] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte geral (arts. 1º ao 120). 4. ed. rev. ampl. atual. Salvador, BA: JusPodivm, 2016. v. único. p. 70.

[2] DELMANTO, Celso. et. al. Código penal comentado. 9. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 607.

[3] Eis a literalidade do art. 6º, caput, do texto constitucional: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

[4] Diz o art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor o seguinte: “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”.

[5] TJMG. AC 10105082834604003/MG, Rel. Des. Antônio Bispo, Décima Quinta Câmara Cível, Julgado em 09/05/2013, DJ 17/05/2013.

[6] Eis a literalidade do artigo 156, caput, do Código Civil brasileiro: “Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa”. E, no parágrafo único, o legislador ainda deixou consignado que “tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias”.

[7] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil esquematizado. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. (Coleção esquematizado/Coordenação Pedro Lenza). p.859,4. E-book.

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Referências:
BRASIL. Agência Nacional de Saúde Complementar. Resolução normativa n. 44, de 24 de julho de 2003. Dispõe sobre a proibição da exigência de caução por parte dos Prestadores de serviços contratados, credenciados, cooperados ou referenciados das Operadoras de Planos de Assistência à Saúde. Publicada no Diário Oficial da União de 28. set. 2003. Disponível em: < http://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=TextoLei&format=raw&id=NTYx >. .
________. Conselho Federal de Medicina. Resolução n. 1.451, de 10 de março de 1995. Estabelece estruturas para prestar atendimento nas situações de urgência-emergência, nos Pronto Socorros Públicos e Privados. Publicada no Diário Oficial da União de 17. mar. 1995, Seção I, p. 3666. Disponível em: < http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1995/1451_1995.pdf >. 
________. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 05. out. 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. 
________. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Publicado no Diário Oficial da União de 31. dez. 1940. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm >. 
________. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Publicada no Diário Oficial da União de 12. set. 1990 - edição extra e retificado em 10. jan. 2007. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm >. 
________. Lei nº 9.961 de 28 de janeiro de 2000. Cria a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e dá outras providências. Publicada no Diário oficial da União de 29. jan. 2000. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9961.htm >. 
________. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Publicada no Diário Oficial da União de 11. jan. 2002. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm >. 
________. Lei n. 12.653, de 28 de maio de 2012. Acresce o art. 135-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para tipificar o crime de condicionar atendimento médico-hospitalar emergencial a qualquer garantia e dá outras providências. Publicada no Diário Oficial da União de 29. maio 2012. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12653.htm >. 
________. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Ação de Cobrança nº 10105082834604003/MG. Relator Desembargador Antônio Bispo. Décima Quinta Câmara Cível. Julgado em 09. maio 2013. Publicado em 17. maio 2013. Disponível em: < https://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/115409665/apelacao-civel-ac-10105082834604003-mg >. 
CAPEZ, Curso de direito penal: parte geral 1 (arts. 1º a 120). 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte especial (arts. 121 ao 361). 8. ed. rev. ampl. atual. Salvador, BA: JusPodivm, 2016.
DELMANTO, Celso. et. al. Código penal comentado. 9. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2016.
DONIZETTI, Elpídio; QUINTELLA, Felipe. Curso didático de direito civil. 6. ed. rev. e atu-al. São Paulo: Atlas, 2017.
FIGUEIREDO, Anna Paula Cavalcante G. A conformidade do crime de condicionamento de atendimento médico-hospitalar de emergência aos princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade do direito penal. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Direito Penal) – Faculdade Damásio. São Paulo, 2017.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil esquematizado. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. (Coleção esquematizado/coordenação: Pedro Lenza). E-book.
MACHADO, Costa (Org.); AZEVEDO, David Teixeira de (Coord.). Código penal interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. 7. ed. Barueri, SP: Manole, 2017.
NUNES, Rizzatto. Comentários ao código de defesa do consumidor. 8. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2015.
SANTOS, Paola Lorena Pinto dos. Mercantilização da saúde e cidadania perdida: o papel do SUS na reafirmação da saúde como direito social. Disponível em: < http://periodicos.unifebe.edu.br/index.php/revistaeletronicadaunifebe/article/view/136/67 >. 
TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 6. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.

 

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Ibijus


Sobre o autor

Anna Paula Cavalcante G Figueiredo

Advogada inscrita nos quadros da OAB/ES.  Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo.  Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Damásio.  Especialista em Direito Tributário pela Faculdade Faveni.  Apoio Especializado Jurídico no IbiJus - Instituto Brasileiro de Direito.


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