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A hipossuficiência dos lojistas face ao empreendedor e a possibilidade de afastamento de cláusulas abusivas dos contratos de locação de centros comerciais


Por Carolina Berton Lick em 11/06/2020 | Direito Civil | Comentários: 0

Tags: contrato de locação, locação comercial, shopping center, lei do inquilinato, contrato de adesão.

Os Lojistas, sejam eles pessoa física ou jurídica, ao pretender fazer o uso de instalações em centros comerciais para explorar suas atividades empresariais, devem celebrar instrumentos de locação, que na maioria das vezes são caracterizados como contratos de adesão, haja vista que sujeitam o locatário à cláusulas pré-determinadas e geralmente revestidas de abusividade.

A autonomia existente nestas relações contratuais muitas vezes colocam os Lojistas em condição desfavorável em relação ao Empreendedor, que não suporta nenhum ônus relativo ao instrumento, enquanto que o locatário está obrigado a cumprir com obrigações excessivas, de modo que a paridade contratual passou a ser questionada com o surgimento destes grandes centros comerciais.

Ressalta-se que anexo ao contrato de locação estão as normas complementares, o regimento interno do empreendimento e o estatuto da associação dos lojistas – documentos estes que são elaborados uma única vez e aproveitados por todos os locatários, não havendo individualização entre eles.

Referidos documentos também podem estar revestidos de abusividade, pois geralmente trazem uma série de privilégios para o Empreendedor, enquanto que o Lojista apenas suporta obrigações.

Por essa razão, existe a caracterização de hipossuficiente do Lojista face ao Empreendedor, pois o locatário pode ser parte leiga em conhecimento jurídico, somado ao fato de que possui pequena probabilidade de negociação das cláusulas contratuais já pré-determinadas, de modo que cabe a ele apenas aceitá-las ou não, o que gera questionamentos do Lojista a respeito de sua livre iniciativa e independência de seu negócio.

Não existe no ordenamento jurídico legislação específica para regular as relações estabelecidas nos Contratos de Locação de Centros Comerciais, apenas os arts. 51 a 57 da Lei nº 8.245/1991 – que tratam acerca da locação comercial na lei do inquilinato.

O contrato de shopping center é atípico; seria impropriamente uma locação para fins comerciais, tendo como prestação o pagamento de um aluguel percentual, a ser calculado sobre o faturamento mensal do estabelecimento, pago ao Empreendedor como forma de participação no lucro do Lojista pelos serviços prestados na publicidade, administração, organização, dentre outros, de modo que locação não é, mas cairá sob a égide da lei do inquilinato, em certos casos, ante a omissão legislativa e com o escopo de resolver certos problemas.[1]

Tal posição já foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do EREsp 331365/MG: “a Lei do Inquilinato aplica-se aos contratos de locação de espaço em shopping center (inteligência dos arts. 1º, 52, §2º, e 54 da Lei 8245⁄91)”.[2]

O art. 54 da lei do inquilinato prevê que nas relações entre Lojistas e Empreendedores de shopping centers, prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação.

Tendo em vista esta liberdade contratual concedida pelo art. 54 da lei do inquilinato, é que poderão surgir as Cláusulas Abusivas que colocam o locatário numa situação de desvantagem em relação ao locador.

Luciana Tasse Ferreira explica que, pouco importa se os contratos em geral são firmados entre particulares ou entre empresários, haverá a incidência do Código Civil sobre eles, de modo que os princípios da função social do contrato, da boa-fé e as regras específicas para os contratos de adesão, que reconhecem a vulnerabilidade do aderente, devem ser aplicadas à todos os instrumentos indistintamente.[3]

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já vinha se posicionando no sentido de que é inaplicável o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de locação, devendo ser aplicada a Lei do Inquilinato (AgRg no Ag 706.211/RS, Rel. Ministro Paulo Gallotti, Sexta Turma, julgado em 21/09/2006)[4].

Todavia, conforme explicado na introdução deste artigo, a relação estabelecida entre Empreendedor e Lojista, seja ele pessoa física ou jurídica, não é equilibrada, sendo notável a diferença de conhecimento jurídico e técnico entre as partes, somado ao fato de que o locatário não possui liberdade para discutir e modificar as cláusulas contratuais, por se tratar de instrumento meramente de adesão, o que oportuniza a inserção de previsões excessivamente onerosas ao aderente, e, por outro lado, conferem somente vantagens ao predisponente.

Tendo em vista essa disparidade contratual é existem posições doutrinárias no sentido de que pode ser aplicada a Lei nº 8.078/1999 – que dispõe sobre a proteção do consumidor aos Contratos de Locação de Centros Comerciais.

Se o Contrato de Locação de Centros Comerciais é considerado de forma unânime pela doutrina, como atípico, por suas características essenciais, não pode ser equiparado a um instrumento simples de locação. Além disso, o art. 4o da Lei de Introdução ao Código Civil de 2002[5] estabelece que em caso de omissão na lei, o juiz decidirá de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, sendo que o Código de Defesa do Consumidor veio em boa hora para preencher a lacuna e o vácuo legal. Os reflexos e as regras do códex consumerista não somente devem atingir os contratantes, mas também vieram socorrer a falta de regulamentação especial.[6]

Mário Cerveira Filho discorre sobre o tema, ao tratar das ações jurídicas ensejadoras do reconhecimento da responsabilidade pré-contratual, no sentido de que, caso o Lojista tenha se submetido a um contrato de franquia, estranho às negociações, e tenha despendido valores por acreditar nas promessas do Empreendedor, e ocorrendo a ruptura unilateral deste último, nasce para ele o direito de pleitear esta restituição, desde o reembolso, sendo que esta medida pode ser amparada tanto pelo Código Civil (art. 159[7]), quanto pelo Código de Defesa do Consumidor, porquanto se o consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final (art. 2º do CDC[8]), e se fornecedor é  toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços (art. 3º do CDC[9]), não pairam dúvidas de que o Lojista está amplamente enquadrado como consumidor, e o Empreendedor como fornecedor.[10]

O art. 29 da lei consumerista dispõe que equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas.[11]

A posição doutrinária que defende a aplicabilidade da lei consumerista aos Contratos de Locação de Centros Comerciais se dá em razão da característica de adesão que reflete nos referidos instrumentos, sendo que o conceito de contrato de adesão está previsto no “caput” do art. 54 da Lei nº 8.078/1999.[12]

Nardim Darcy Lemke também defende que essa relação é, para os efeitos legais, uma relação de consumo, em que o Lojista figura como consumidor final da locação, embora um consumidor final que poderá ser um comerciante, e um profissional que visa utilizar o espaço físico para obter lucros, mas é certo que estará em condição de inferioridade em relação ao Empreendedor, razão pela qual precisa de proteção legal, sob pena de ser surpreendido por alguma medida violenta por parte do locador. [13]

Em que pese o art. 54 da lei do inquilinato prever que nas relações entre Lojistas e Empreendedores de shopping centers, prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação, não é certo admitir que o Empreendedor do centro comercial fique sempre numa situação de vantagem e segurança em relação ao Lojista, estipulando cláusulas que não poderiam ser posteriormente modificadas, razão pela qual o locatário merece tratamento mais protetivo nesta relação contratual, face aos princípios da função social do contrato e da boa-fé.

Portanto, o que vai determinar a aplicabilidade ou não das normas consumeristas ao Contrato de Locação de Centros Comerciais é a situação de vulnerabilidade do Lojista, seja ele pessoa física ou jurídica, face ao Empreendedor. Em outras palavras, caberá ao julgador, em sendo o caso de propositura de demanda em que tenha sido levantada a tese de Hipossuficiência do Lojista, verificar a realidade fática – a potência do locador e a situação do locatário – se este é pequeno empresário, se possui conhecimento jurídico acerca das cláusulas inseridas no contrato, dentre outras peculiaridades inerentes ao caso concreto.

Deste modo, havendo previsão contratual que destoa dos princípios e regras acima descritos - que devem reger toda e qualquer relação contratual, mostra-se perfeitamente cabível a adoção de medidas que visem a revisão ou anulação de Cláusulas Abusivas.

Apesar de não ser unânime o entendimento doutrinário, e tampouco jurisprudencial, no sentido de que é aplicável o Código de Consumidor aos Contratos de Locação de Centros Comerciais, verificou-se que é possível, pelo menos, a aplicabilidade dos princípios previstos na Lei nº 8.078/1999, mormente porque referido instrumento é atípico e possui particularidades que o diferenciam do contrato de locação previsto na lei do inquilinato, pois referido Diploma Legal trata sobre a locação de shopping centers apenas em dois artigos.

Deste modo, mostra-se imperioso que o julgador analise as peculiaridades que o caso apresenta, bem como, verifique se na hipótese foram observados os princípios que devem reger qualquer relação contratual, previstos no Código Civil e no Código de Defesa de Consumidor, vale dizer, a boa-fé das partes contratantes, a abusividade de uma parte em relação à outra, a eventual caraterização de onerosidade excessiva, dentre outros, e, particularmente no que tange a hipótese deste trabalho, verificar se o Lojista é hipossuficiente em relação ao Empreendedor, bem como, se essa condição pode ser utilizada para o afastamento de Cláusulas Abusivas, em eventual discussão judicial.

Ainda, deve ser analisado se há situação de vulnerabilidade do Lojista, diante da realidade fática, analisando-se a potência do locador e a situação do locatário – se este é pequeno empresário; se possui conhecimento jurídico acerca das cláusulas inseridas no contrato; se as previsões contratuais lhe causaram prejuízos, dentre outras peculiaridades que o caso concreto irá apresentar.

A solução para evitar eventuais discussões e até mesmo uma ruptura contratual é adotar um sistema de cooperação e equilíbrio entre as partes contratantes, de modo que o interesse de ambas seja atendido, aplicando os princípios da boa-fé e da função social do contrato, de modo a proteger tanto o Empreendedor quanto o Lojista.

Ao adotar essas medidas é certo que haverá redução de lides que visam a revisão ou anulabilidade de cláusulas contratuais abusivas, o que é um benefício tanto para locatário quanto para o Empreendedor, pois é sabido que um processo judicial pode mostrar-se desgastante, ao tramitar durante anos e acarretar despesas ainda maiores para ambas as partes.

Sendo assim, se locador e locatário puderem debater e adequar as cláusulas contratuais aos seus interesses, mantendo-as justas para as duas partes, permitindo também que o contrato seja mais bem elaborado e que siga o ordenamento jurídico – de modo que não existam mais os abusos e ilegalidades nas cláusulas contratuais, o sucesso do centro comercial será uma consequência.


[1] DINIZ, Maria Helena. Lei de locações de imóveis urbanos comentada: (Lei n. 8.245 de 18-10-1991). 9. ed. rev. e atual. de acordo com a reforma do CPC. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 249.

[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.  Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 331365/MG da Terceira Seção, Relator: Ministro Hamilton Carvalhido, Julgado em 26 de março de 2008. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200200852331&dt_publicacao=06/08/2008> Acesso em: 25 jan. 2019.

[3] FERREIRA, Luciana Tasse. Análise crítica dos contratos interempresariais entre desiguais: o contrato de credenciamento do fornecedor ao sistema de cartão de crédito. In XXIV Encontro Nacional do CONPEDI – UFS, Direito Empresarial, Coordenadores: Demetrius Nichele Macei, Marcelo Benacchio, Maria De Fatima Ribeiro, Florianópolis, 2015. Disponível em: < https://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/o9e87870/oAJp8J3lNAWzAlF2.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2019, p. 126.

[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental nº 706.211/RS da 6ª Turma, Relator: Min. PAULO GALLOTTI, Julgado em: 21 de setembro de 2006. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=200501497898&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea>. Acesso em 03 mar. 2019.

[5] “Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm>. Acesso em: 03 mar. 2019.

[6] CERVEIRA FILHO, Mário. Shopping centers: direitos dos lojistas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p.92-93.

[7] “Art. 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante.” BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui O Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 22 mar. 2019.

[8] “Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. Brasil. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078.htm>. Acesso em: 22 mar. 2019.

[9] “Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.” Brasil. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078.htm>. Acesso em: 22 mar. 2019.

[10] CERVEIRA FILHO, Mário. Shopping centers: direitos dos lojistas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p14.

[11] “Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas.” Brasil. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078.htm>. Acesso em: 30 jan. 2019.

[12] “Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.” Brasil. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078.htm>. Acesso em: 28 jan. 2019.

[13] LEMKE, Nardim Darcy. Shopping center: questões jurídicas e contratuais. Blumenau: Acadêmica Publicações, 1999, p. 125.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Ibijus


Sobre o autor

Carolina Berton Lick

Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Civil. FORMAÇÃO: Graduação em Direito pela UNIVALI – Universidade do Vale do Itajaí – concluída em 2016. Pós-graduação em Direito Civil Avançado pela UNIVALI – Universidade do Vale do Itajaí - previsão para conclusão: abril/2019. EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL: 2012 - Estágio Voluntário no Cartório da 1ª Vara Cível da Comarca de Itapema/SC. 2013 - Estágio Remunerado no Cartório da 1ª Vara Cível da Comarca de Itapema/SC. 2013 - 2014 - Estágio Remunerado no Gabinete da 1ª Vara Cível da Comarca de Itapema/SC. 2014 - 2019 – Assistente jurídica e advogada no escritório de advocacia Sachet Advogados Associados. QUALIFICAÇÕES E ATIVIDADES COMPLEMENTARES: Advogada - OAB/SC 48.371. Membro das Comissões: OAB vai à Escola; Assuntos Sociais e Direito Ambiental e Direito dos Animais, da OAB/SC, Subseção de Itapema.


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