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O cadastramento de dados dos cidadãos em bases dispersas.

Mais uma vez o turbilhão legislativo


Por Andréa Silva Rasga Ueda em 07/08/2019 | Advocacia | Comentários: 0

O cadastramento de dados dos cidadãos em bases dispersas.

 

Sequer temos a sanção presidencial para o texto legal de conversão da MP 869/2019, que dispõe, basicamente, sobre a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e suas atribuições, mas a sanha legiferante continua dando os ares da sua graça, trazendo à vista de análise dos membros do nosso Congresso Nacional, neste caso, particularmente, da Câmara dos Deputados Federais, mais um Projeto de Lei (nº 3443/2019) que trata de disponibilização de dados pessoais (inclusive sensíveis) dos cidadãos, sob a argumentação de “promover a atuação integrada e sistêmica entre os órgãos e as entidades envolvidos na prestação e no controle dos serviços públicos”[1].

Não entrarei no mérito quanto à proposta completa do referido Projeto de Lei, que tem por justificativa a prestação digital de serviços públicos, para todos os níveis federativos, em prol da tão almejada desburocratização. O que aqui busco trazer para avaliação e discussão pública é se o momento legislativo em que tal proposta é apresentada é pertinente: não temos a ANPD legalmente aprovada, demorará para ser constituída, e ainda mais um pouco de tempo para colocar em prática as atribuições para a qual foi desenhada, ao menos originalmente.

Se é assim, como, então, propor uma legislação que, dentre outros temas, cria um Cadastro Base do Cidadão, com a finalidade de “facilitar o compartilhamento de dados cadastrais do cidadão entre os órgãos de Governo”[2], se ainda não saberemos como serão aplicadas as próprias disposições da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados ou “LGPD”)? Soa como algo descolado da realidade, gerador de insegurança jurídica.

Para se ter uma ideia do tamanho da dificuldade, se o Projeto de Lei for aprovado na forma em que se apresenta, sem maiores discussões e alinhamento com a ANPD, o art. 30 do referido Projeto de Lei dispõe-se que “o Cadastro Base do Cidadão será composto pela base integradora e pelos componentes de interoperabilidade necessários ao intercâmbio de dados dessa base com as bases temáticas e passará a ser a base de referência de informações sobre cidadãos para os órgãos e entidades do Poder Executivo federal”, sendo certo que cada entidade pública poderá ter outras tantas bases de dados ou cadastros, “os quais deverão ser amplamente seguidos pelos órgãos e entidades daquele ente ou poder”[3].

Pode haver essa profusão de bases de dados públicas? Sim, pode, apesar de não ser o ideal, mas ela deverá ser compatibilizada com o quanto disposto no Capítulo IV da LGPD, onde temos a forma como as pessoas jurídicas de direito público deverão tratar os dados pessoais. Por isso dever-se-ia aguardar a entrada em pleno vigor da LGPD, com a criação da ANPD, para que esse tratamento fosse melhor delineado e trabalhado, até porque, competirá à ANPD estabelecer normas complementares para as atividades de comunicação e uso compartilhado de dados pessoais.

É certo que a Lei nº 12.414/2011, que disciplina a formação e a consulta a bancos de dados com informações de adimplemento, de pessoas naturais ou de pessoas jurídicas, para formação de histórico de crédito, dispõe no parágrafo único do art.  que “os bancos de dados instituídos ou mantidos por pessoas jurídicas de direito público interno serão regidos por legislação específica”, o que não conflitaria com o Projeto de Lei proposto. Contudo, reitero, o problema está justamente no momento em que essa proposta legislativa de criação de Banco de Dados dos Cidadãos é apresentada, totalmente desalinhado com o atual estágio legislativo no qual a proteção de dados pessoais se encontra.

Apesar das aparentes cautelas com as que o Projeto de Lei parece se cercar a respeito, em especial, da LGPD, um ponto que chama a atenção diz com a possibilidade de transferência de sigilo de informações obtidas “sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades” por parte da Fazenda Pública e de seus servidores, conforme art. 198 do Código Tributário Nacional(“CTN”), com base no quanto disposto no inciso V do art.  do referido Projeto.

Essa proposição legal diz que “a Prestação Digital dos Serviços Públicos tem”, dentre outras finalidades a de “promover a atuação integrada e sistêmica entre os órgãos e as entidades envolvidos na prestação e no controle dos serviços públicos”, no que couber, mediante a transferência de sigilo de informações, justamente conforme art. 198 do CTN. O que o legislador proponente quis dizer: que poderá ser feita a transmissão de dados, ainda que sigilosos, de forma integrada e sistêmica, ou que se mantém a vedação imposta pelo referido dispositivo do CTN, que só pode ser rompida por ordem judicial ou administrativa, nesta hipótese, desde que exista “regular processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa”? Uma redação ruim, imprecisa e que merece ser revista (excluída, quiçá).

Em suma, a intenção deste artigo não foi trazer nem uma detalhada interpretação do Projeto de Lei, nem uma análise quanto às questões de fundo que levaram à sua proposição. O importante, uma vez mais, é trazer à luz a existência de tal Projeto de Lei e os impactos que o mesmo poderá ter na legislação já vigente e naquela que já está nascendo, sob a sanção presidencial.

Mister que o legislador seja mais atento nas suas proposições, olhando o que está em vigor, o que entrará em vigor e eventuais outras propostas legislativas em andamento, justamente para evitarmos conflitos de leis e, portanto, a intolerável insegurança jurídica.

 


 

[1] Inciso V do art. 2º do Projeto de Lei nº 3443/2019, de autoria dos senhores Tiago Mitraud, Vinicius Poit, JHC, João H. Campos, Luisa Canziani, Marcelo Calero, Mariana Carvalho, Paulo Ganime, Prof. Israel e Rodrigo Coelho. Disponível em <https://www.câmara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1763140&filename=Tramitacao-PL+3443/2019>. Acesso em: 25.06.2019.

[2] Inciso V do art. 30 do Projeto de Lei nº 3443/2019. <https://www.câmara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1763140&filename=Tramitacao-PL+3443/2019>. Acesso em: 25.06.2019.

[3] Art. 34 do Projeto de Lei nº 3443/2019. <https://www.câmara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1763140&filename=Tramitacao-PL+3443/2019>. Acesso em: 25.06.2019.

 

Publicado originalmente no site JusBrasil, https://andreaueda.jusbrasil.com.br/artigos/724673353/o-cadastramento-de-dados-dos-cidadaos-em-bases-dispersas, em 25.06.2019.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Ibijus


Sobre o autor

Andréa Silva Rasga Ueda

Bacharel (1993), Mestre em Direito Civil (2009) e Doutora em Direito Civil (2015), todas pela USP, atuando como advogada desde 1994, tendo atuado até 2006 em escritórios próprio e de terceiros (médio e grande portes), com grande experiência no consultivo e contencioso civil (especialmente em contratos), comercial, societário (elaboração de atos societários de Ltdas. e S.As, de capital aberto e fechado; participação em M&A, IPOs, Private Placement), bem como em transações imobiliárias e questões envolvendo mercado de capitais e compliance. De 2007 até 2018 criei e gerenciei departamentos jurídicos de empresas nacionais e transnacionais. Atualmente atuo como consultora jurídica corporativa e como diretora jurídica na startup de geração distribuída Sunalizer, com atuação nacional e internacional. Forte experiência no regulatório de energia e GD, de 2007 a 2012 e 2018-atualmente, de mercado de capitais e de construção de torres para suporte às antenas de empresas de telecomunicações (desde 2013). Professora da Escola Superior da Advocacia (ESA-SP), entre 2001 e 2002, na matéria de Prática em Processo Civil, bem como assistente de professor na matéria Direito Privado I e II, na Faculdade de Direito da USP, durante o ano de 2007. Especializações: Consultivo civil/empresarial (Contratos) e societário; M&A e atuação em estruturações de operações financeiras; mercado de capitais; regulatório de energia e telecomunicações. Meu site é: deaalex.wordpress.com. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6450080476147839


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