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Multiparentalidade e a nova decisão do STF sobre a prevalência da verdade socioafetiva sobre a verdade biológica na filiação

Multiparentalidade e a nova decisão do STF sobre a prevalência da verdade socioafetiva sobre a verdade biológica na filiação


Por Renata de Lima Rodrigues em 26/01/2013 | Direito de Família | Comentários: 0

Multiparentalidade e a nova decisão do STF sobre a prevalência da verdade socioafetiva sobre a verdade biológica na filiação

O direito de família contemporâneo tem procurado renovar seus conceitos e institutos na mesma velocidade das mutações que experimentamos em nossa sociedade. Inúmeros paradigmas foram ultrapassados na permanente tentativa de se alinhar à realidade social que se modifica rapidamente e que se multiplica em nuances que refletem o fenômeno hodierno de individualização de estilos de vida, que se firmam e declinam de maneira acelerada.

Uma destas grandes conquistas funda-se em uma premissa fundamental para (des)construção de todos os seus institutos: a compreensão do fato de que conceitos como família, paternidade, maternidade, filiação e parentesco não consistem em conceitos naturalizados ou dados prontos, mas constituem-se em definições que devem ser recebidas pelas ciências, dentre elas, a ciência jurídica, como construções culturais ou criações humanas, que merecem ser problematizadas diante de seus contextos civilizatórios.

Uma alteração substancial ocorreu na própria natureza jurídica da família e em sua função, transformando definitivamente a dinâmica das relações familiares: a família deixou de ser um instituto formal e absolutizado, que atraía a tutela jurídica de per si, para se transmudar em um núcleo social funcionalizado ao desenvolvimento da personalidade e da dignidade de seus membros. Além disso, a realidade impôs o fim de mais uma barreira codificada: a rigidez e a indissolubilidade do vínculo conjugal. Já que a família passou a se constituir em um locusde realização pessoal, fez-se necessário atribuir às pessoas a liberdade de (des)constituição familiar, possibilitando-as perseguir satisfação em outros arranjos familiares, quando frustrado o plano de vida estabelecido com um determinado consorte.

A liberdade de constituição familiar, marcada não só pela possibilidade de desconstituição do casamento - inaugurada pela Lei do Divórcio, em 1977 -, mas também pela possibilidade de se constituir família por meios informais, e, de maneira igualmente informal, pôr fim à sua existência, gerou o fenômeno social, hoje, amplamente disseminado em nossa realidade, consistente na formação das chamadas famílias recompostas ou reconstituídas, que trazem cada vez mais complicadas repercussões jurídicas, mormente no que diz respeito ao estabelecimento dos papéis parentais e do exercício do poder familiar, indicando a corrosão de um último paradigma de nossa cultura jurídica: a biparentalidade, que cede lugar ao que aqui convencionamos denominar multiparentalidade1. Esse novo fenômeno jurídico tem seu fundamento, também, nas concepções de socioafetividade, novo fator propulsor ao estabelecimento de parentesco.

Família reconstituída é “a estrutura familiar originada do casamento ou da união estável de um casal, na qual um ou ambos de seus membros tem filho ou filhos de um vínculo anterior”. Esse fenômeno vem crescendo atualmente, em face do aumento do número de separa¬ções, divórcios e dissolu¬ções de união estável, conforme comprovado por dados do IBGE.As famílias que se formam em resultado do rompimento conjugal, tornam-se monoparentais. Essa situação pode ter um tempo definido ou não, já que vinculada à recomposição familiar, agregando-se um novo cônjuge ou companheiro àquele núcleo familiar, fazendo que surja, dessa forma, um novo arranjo.

Não obstante a grande relevância do fenômeno na esfera sociológica, é incipiente a manifestação jurídica sobre o tema, não apenas em termos legislativos, mas também, doutrinários e jurisprudenciais, situação que tende a mudar. O pronunciamento legal mais antigo cinge-se ao art. 1.595 do CCB/02, que prevê o parentesco por afinidade do cônjuge ou do companheiro aos parentes do outro, que se restringe aos ascendentes, descendentes e irmãos. Entretanto, a lei se cala a respeito da maioria das rela¬ções jurídicas que se formam entre esses novos parentes afins e novos arranjos familiares. Note-se que a escassa doutrina existente considera esta espécie de família apenas quando existem filhos de um ou de ambos os cônjuges ou companheiros, que passam a conviver com o outro. Formam um novo lar com regras próprias, no qual cada um traz consigo a experiência vivida na família anterior. Diante dessa diversidade, a única alternativa é a criação de novas formas de convivência, através da qual os membros possam co-existir em busca da harmonia no novo arranjo familiar.

A doutrina costuma reconhecer a existência de parentesco socioafetivo a partir da comprovação dos requisitos que compõem a posse de estado de filho, sendo eles, nome, trato e fama. Sem dúvida, trata-se a posse de estado de meio hábil a comprovar o vínculo afetivo entre pais e filhos de criação, mas ela não é capaz de constituir o próprio vínculo, pois, como sabido, posse de estado é apenas meio de prova subsidiário, e, portanto, não gera estado. Sendo assim, não é ela a definir a substância desse novo tipo de parentesco, mas apenas sua comprovação. O que constitui a essência da socioafetividade é o exercício fático da autoridade parental, ou seja, é o fato de alguém, que não é genitor biológico, desincumbir-se de praticar as condutas necessárias para criar e educar filhos menores, com o escopo de edificar sua personalidade, independentemente de vínculos consangüíneos que geram tal obrigação legal. Portanto, nesse novo vínculo de parentesco, não é a paternidade ou a maternidade que ocasiona a titularidade da autoridade parental e o dever de exercê-la em prol dos filhos menores. É o próprio exercício da autoridade parental, externado sob a roupagem de condutas objetivas como criar, educar e assistir a prole, que acaba por gerar o vínculo jurídico da parentalidade.

Logo, com o casamento ou a união estável de duas pessoas, que levam para o novo lar um ou mais filhos de rela¬ções anteriores — seja em decorrência de viuvez, separa¬ções, divórcios, dissolu¬ções de uniões estáveis ou do pai e mãe solteiros que criam sozinhos seus filhos —, há o estabelecimento de um conjunto próprio de regras de convivência para aquela nova família, principalmente no que se refere à continuidade da criação e educação dos filhos. Isso porque o espaço de liberdade de cada um sofre interferências, em decorrência das novas pessoas que se agregam àquele núcleo familiar. Tais interferências podem ser positivas ou negativas, no que se refere ao desenvolvimento da personalidade dos filhos, de modo que podem vir a configurar situações patológicas ou promocionais. A questão se torna relevante quando o genitor biológico, não guardião, é ausente, por morte, abandono ou não-convivência com o filho. Todavia, hoje se vislumbra a possibilidade de, mesmo o genitor biológico sendo presente, existir um compartilhamento das funções parentais, ou dos deveres inerentes à autoridade parental. Tal conduta externalizada espontaneamente, consubstanciada nos deveres de criar, educar e assistir, pode ser fonte da socioafetividade, que gera efeitos jurídicos e responsabilidade parental, por ser nova modalidade de parentesco, presente na cláusula geral de parentesco por outra origem que não a biológica, prevista no art. 1.593 do Código Civil.

Por isso, não há dúvidas de que as famílias recompostas são um locus especial para o nascimento da socioafetividade, por ser um novo arranjo familiar, que exige regras próprias em seu interno, em função do modus vivendi das pessoas que agora se agregam e passam a viver juntas e a exercer funções recíprocas, uma na vida da outra. Existe, por isso, o compartilhamento de um espaço comum e cuidados recíprocos que são fonte de efeitos jurídicos, principalmente no que se refere aos cuidados parentais, direcionados à criança e ao adolescente.

Partindo da premissa de que família é uma estruturação psíquica, na qual parentalidade e filiação são funções que determinadas pessoas exercem umas nas vidas das outras, reciprocamente, a maneira mais objetiva de se averiguar a existência dessas relações é procurar identificar a prática de atos que são típicos da autoridade parental, cujo conteúdo básico consiste em um conjunto de deveres da família que correspondem aos direitos fundamentais da criança e do adolescente, positivados no artigo 227 da CF. Portanto, são situações em que os menores podem enxergar não só em seus pais, mas também em terceiros, a figura parental responsável por lhes criar e educar. Não tutelar esse fenômeno, que ousamos denominar multiparentalidade, pode ser explícita agressão ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, que nessas situações prescinde da convivência com todas essas figuras, e que deve ser, portanto, tutelada amplamente pela ordem jurídica.  

Uma vez desvinculada a função parental da ascendência biológica, sendo a paternidade e a maternidade atividades realizadas em prol do desenvolvimento dos filhos menores, a realidade social brasileira tem mostrado que essas funções podem ser exercidas por “mais de um pai“ ou “mais de uma mãe” simultaneamente, sobretudo, no que toca à dinâmica e ao funcionamento das relações interpessoais travadas em núcleos familiares recompostos, pois é inevitável a participação do pai/mãe afim nas tarefas inerentes ao poder parental, pois ele convive diariamente com a criança; participa dos conflitos familiares, dos momentos de alegria e de comemoração. Também simboliza a autoridade que, geralmente, é compartilhada com o genitor biológico. Por ser integrante da família, sua opinião é relevante, pois a família é funcionalizada à promoção da dignidade de seus membros. 

Sendo assim, defendemos a multiparentalidade como alternativa de tutela jurídica para um fenômeno já existente em nossa sociedade, que é fruto, precipuamente, da liberdade de (des)constituição familiar e da conseqüente formação de famílias reconstituídas. A nosso sentir, a multiparentalidade garante aos filhos menores que, na prática, convivem com múltiplas figuras parentais a tutela jurídica de todos os efeitos que emanam tanto da vinculação biológica como da socioafetiva, que, como demonstrado, em alguns casos, não são excludentes, e nem haveria razão para ser, se tal restrição exclui a tutela aos menores, presumidamente vulneráveis. Assim, caso seja rompida a convivência familiar com quaisquer das figuras parentais – formadas por vínculos biológicos, presumidos ou socioafetivos –, o menor terá mecanismos jurídicos capazes de proteger seus direitos fundamentais, especialmente enumerados para preservar a possibilidade de seu desenvolvimento pleno, pois, através do convívio e do cuidado diário, tornaram-se dependentes da assistência provida por cada um deles, tanto no âmbito material, quanto na seara existencial, de modo a gerar os mesmos efeitos do parentesco.

Já há decisões em nosso país que consagram a multiparentalidade como um novo arranjo de parentesco. Festejada decisão de primeira instância foi proferida em novembro de 2011, pela Juíza Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz, na 01ª Vara Cível da Comarca de Ariquemes/RO, nos autos da ação de investigação de paternidade nº 0012530-95.2010.8.22.0002. Talvez, seja possível afirmar se tratar da primeira sentença que reconheceu e declarou a dupla paternidade propriamente dita de uma menina, fazendo constar em seu assento registral os nomes do pai biológico e afetivo da criança, sem prejuízo da manutenção do registro materno. Depois disso, recentemente, nova decisão foi proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (AC 0006422-26.2011.8.26.0286; 1ª C.D. Priv.; Relator Des. Alcides Leopoldo e Silva Junior, DJESP 11/102012) que comandou o registro de um adolescente em nome de seu pai biológico, sua mãe biológica e sua madrasta, como mãe socioafetiva.

São decisões que apontam para um novo fato que não pode ser desconsiderado pela doutrina mais atenta: não há, a priori, nenhum tipo de prevalência ou hierarquia do parentesco biológico sobre o socioafetivo e vice-versa. O que ocorre é que em muitos casos ambos são fundamentais na vida e na edificação da identidade e da personalidade da pessoa, devendo ser preservados em nome da dignidade da pessoa humana e do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

Entretanto, o Supremo Tribunal Federal (STF), em votação no Plenário Virtual, reconheceu repercussão geral em tema que discute a prevalência, ou não, da paternidade socioafetiva sobre a biológica. A questão chegou à Corte por meio do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 692186, interposto contra decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que inadmitiu a remessa do recurso extraordinário para o STF. No processo, foi requerida a anulação de registro de nascimento feito pelos avós paternos, como se estes fossem os pais, e o reconhecimento da paternidade do pai biológico.

Em primeira instância, a ação foi julgada procedente e este entendimento foi mantido pela segunda instância e pelo STJ. No recurso interposto ao Supremo, os demais herdeiros do pai biológico alegam que a decisão do STJ, ao preferir a realidade biológica, em detrimento da realidade socioafetiva, sem priorizar as relações de família que têm por base o afeto, afronta o artigo 226, caput, da Constituição Federal, segundo o qual "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado".

O relator do recurso, ministro Luiz Fux, levou a matéria ao exame do Plenário Virtual por entender que o tema - a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica - é relevante sob os pontos de vista econômico, jurídico e social. Por maioria, os ministros seguiram o relator e reconheceram a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada.

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1 Sobre o tema, recomendamos a leitura do nosso: RODRIGUES, Renata de Lima Rodrigues; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. O direito das famílias entre a norma e a realidade. São Paulo: Atlas: 2010.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Ibijus


Sobre o autor

Renata de Lima Rodrigues

Doutoranda em Direito Privado e Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Uiversidade católica de Minas Gerais - PUC/Minas (2007), Especialista em Direito Civil pelo IEC-PUC/Minas (2004), Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2001). Professora de Direito Civil em cursos de graduação, pós-graduação e cursos preparatórios para concursos em Belo Horizonte, com ênfase nas disciplinas Fundamentos constitucionais do Direito Privado, Teoria Geral do Direito Privado, Direito das Famílias, Direito das Sucessões e Biodireito. Pesquisadora atuante em grupos de pesquisa na PUC/Minas sob a orientação da Profª Marinella Machado Araújo. Membro do NUJUP/OPUR. Membro do IBDFAM. Advogada


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