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Limitação da hidratação e nutrição no fim da vida: entre a eutanásia e a ortotanásia

Texto aborda as distinções conceituais entre eutanásia e ortotanásia, analisando a limitação de hidratação e nutrição no fim da vida diante do sistema jurídico brasileiro e da deontologia médica


Por Luciana Dadalto em 18/07/2013 | Biodireito | Comentários: 0

Limitação da hidratação e nutrição no fim da vida: entre a eutanásia e a ortotanásia

O estudo dos cuidados com o fim da vida tem aumentado nas últimas décadas, aumento diretamente proporcional à evolução biotecnológica, que provocou a manutenção artificial da vida biológica.  É comum encontrar estudos de Bioética e Biodireito que tratam dos termos ¨eutanásia¨, ¨ortotanásia¨, ¨distanásia¨ e ¨suicídio assistido¨. Existem várias de discussões – importantes e pertinentes – sobre a legalidade e a eticidade dessas práticas, contudo,  falta na literatura especializada, estudos sobre uma problemática fulcral à distinção de cuidados paliativos e tratamentos extraordinários: a suspensão de hidratação e nutrição artificiais (AHA) em pacientes terminais e em estado vegetativo persistente (EVP).

Importante ressaltar que, conforme afirma Pessini1, quando se condena a eutanásia, não está se condenando a ideia por trás do ato, ou seja, a compaixão de querer abreviar o sofrimento do paciente, mas sim a ação do profissional de saúde que, ao invés de usar seus conhecimentos para diminuir a dor, o desconforto e não prolongar a vida que já se sabe estar terminal, opta por interromper o curso natural da doença, praticando uma ação cuja consequência direta é a morte do paciente (a chamada eutanásia ativa) ou se omitindo de uma conduta que ainda é indicada ao paciente (a chamada eutanásia passiva).

Já a ortotanásia é caracterizada por condutas restritivas dos profissionais de saúde, que, diante da impossibilidade de cura e munidos de compaixão, se utilizam de tratamentos cujo propósito é apenas proporcionar conforto, possibilitar que o paciente possa morrer dignamente, direito individual que deve ser protegido, com o menor sofrimento possível e perto de seus familiares e amigos. Assim, a morte não é apressada, mas humanizada2.

Percebe-se, portanto, que a diferença entre eutanásia e ortotanásia não está na prática ou não de uma ação pelo profissional de saúde mas sim na verificação, diante do caso concreto, se a conduta do profissional abreviou a vida do paciente, impossibilitando que o desfecho morte ocorresse em seu tempo natural ou permitiu que este acontecesse sem interferências, apenas com cuidados paliativos, para garantir a qualidade de vida do sujeito, mesmo em situação de fim da vida.

Do ponto de vista jurídico, trata-se da diferença entre matar e deixar morrer. Do ponto de vista médico, trata-se da diferença entre esforço terapêutico e cuidados paliativos.

Juridicamente, no Brasil a eutanásia está tipificada no Código Penal, artigo 121, §1º, que dispõe acerca do homicídio impelido de motivação com relevante valor moral, crime que, segundo exposição de motivos deste diploma legal, abarca a eutanásia, pois os legisladores associaram o relevante valor moral à compaixão com o doente. Significa dizer que, no Brasil, a eutanásia é crime, tendo o agente sua pena diminuída em razão da motivação.

No dia 27 de junho de 2012, a comissão de reforma do Código Penal brasileiro entregou ao Senado o texto do anteprojeto do novo Código Penal. Neste, existe um tipo penal específico para a eutanásia: matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave. Trata-se de um grande avanço para o Direito e para a sociedade. Ressalte-se apenas que este anteprojeto ainda precisa ser aprovado pelo Senado e pela Câmara.

No que tange à ortotanásia, a despeito de raras decisões judiciais que equiparam-na ao homicídio, tem se estabelecido consenso entre os juristas de que é prática lícita no ordenamento jurídico brasileiro, vez que não visa encurtar a vida e sim não prolongá-la, quando o desfecho morte é certo. Inclusive, no já mencionado anteprojeto do novo Código Penal,  a ortotanásia é tratada como causa de excludente de ilicitude da eutanásia.

Do ponto de vista médico, enquanto os cuidados paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais3, o esforço terapêutico é a utilização irrestrita de todos os tratamentos fúteis com a finalidade de manter, a todo o custo, a vida biológica do paciente. Beauchamps e Childress4 afirmam que o tratamento é considerado fútil quando não oferece benefício real ao paciente, pois a morte é inevitável. Assim, percebe-se que, em linhas gerais, o tratamento fútil está diretamente relacionado com o (não) benefício que trará ao paciente. Portanto, deve-se aferir, in concreto, quando determinado tratamento torna-se fútil.

Entretanto, estudos realizados com profissionais de saúde5 demonstram que estes consideram como futilidade terapêutica em casos de terminalidade a reanimação cardio-pulmonar, ventilação mecânica, drogas vasoativas, métodos dialíticos. Demonstram ainda que existe uma tendência a considerar  a nutrição enteral e parenteral e a hidratação venosa como tratamentos potencialmente fúteis. Ocorre que, não obstante tais fatos, existe uma recomendação da Pontifícia Academia de Ciências  de que haja suspensão de AHA ao moribundo,  vez que estão ligadas à dignidade humana, incluindo estes suportes no rol de cuidados paliativos, posição aceita por grande parte dos estudiosos6.

Isto posto, percebe-se que há um consenso médico e jurídico acerca da possibilidade de limitar tratamentos fúteis, evidenciando assim a aceitação da prática de ortotanásia. Contudo, diante da proibição legal da prática da eutanásia no Brasil, bem como da moralidade cristã que permeia o Ocidente, a limitação da AHA tem se mostrado a grande controvérsia acerca dos cuidados com o fim da vida.

No que tange aos pacientes terminais, salta aos olhos a existência de estudos que sugerem que o suporte nutricional é incapaz de modificar o curso da doença em pacientes terminais7, mais ainda, que os profissionais são, em muitos casos, obrigados a suspender por completo a hidratação e a nutrição, por qualquer meio, pela clara impossibilidade de encontrar veias periféricas e/ou pela impossibilidade de puncionar uma veia central ou efetuar outra intervenção invasiva – dissecação de veia periférica, gastrostomia8.

Por esta razão, do ponto de vista estritamente científico, não há óbice à suspensão da AHA em pacientes terminais. Todavia, na perspectiva dos cuidados paliativos como cuidados físicos, psicológicos e espirituais ao paciente e a seus familiares, a suspensão de AHA encontra resistência em respeito à família, ao que Pessini9 chama de significado simbólico, pois, apesar de estar comprovado que o paciente não sente fome nem sede, a família sofre com a morte por inanição ou desidratação, ou, nas palavras deste mesmo estudioso, sofre pelo simbólico, por imaginar que seu ente querido morreu de fome e de sede, desta feita, deve-se preservar a família.

Todavia, se o paciente, por meio de um testamento vital, documento escrito por pessoa capaz, no pleno exercício de suas capacidades, com a finalidade de manifestar previamente sua vontade, acerca dos tratamentos e não tratamentos a que deseja ser submetido caso se torne um paciente fora de possibilidades terapeuticas10, tiver manifestado a vontade de que lhe seja limitado hidratação e nutrição quando estes não mais lhe proporcionarem benefícios, mesmo diante da recusa da família, os profissionais de saúde poderão fazê-lo, vez que estarão atendendo à vontade que o paciente, enquanto sujeito consciente e capaz, manifestou.

Mais complexa é a situação da suspensão de AHA no caso de EVP. Neste caso, o paciente possui vida biológica (reage a alguns estímulos, e mantém em funcionamento processos metabólicos) mas não possuem vida cognitiva (capacidade de pensar, escolher e se relacionar)11 (NEUROLOGY, 1989), e, apesar de tal quadro, a expectativa de vida é longa, mesmo não estando ligado a aparelhos, assim, a única coisa que o mantém vivo é a hidratação e a nutrição.

É perceptível, portanto, que tal limitação deve ser tratada de forma diferente em pacientes terminais e em pacientes em EVP, isto porque, enquanto para os primeiros, tais suportes vitais podem ser entendidos como tratamentos fúteis, para os segundos, ultrapassam inclusive o conceito de cuidados paliativos, pois, mais do que tratamentos médicos, são considerados como cuidados básicos (FUHRMAN; HERMANN, 2006)12.

Esta diferenciação poderia, a priori, levar à uma conclusão equivocada de que no cuidado com os pacientes terminais a suspensão de AHA pode ser vista, diante do caso concreto, como cuidado paliativo e que no EVP caracterizaria eutanásia, pois acarretaria, incontinenti, a morte do paciente. Entretanto, é preciso ter em mente que a tênue diferença entre cuidados paliativos e tratamentos extraordinários é que os primeiros garantem e/ou melhoram a qualidade de vida dos pacientes, enquanto que os segundos apenas prolongam a vida biológica.

Assim, a AHA só pode ser considerada cuidado básico quando melhorar a qualidade de vida, o que não é o caso na maior parte das situações, pois pode gerar danos e desconfortos para o paciente, razão pela qual, deve ser considerada um tratamento médico, que substitui uma função, assim como a ventilação mecânica e a diálise. Saliente-se, ainda, a comprovação científica de que a suspensão de AHA não faz com que o paciente morra de fome e sede – principal temor diante da em se aceitar tal suspensão - , pois existem formas de paliar essas sensações, como molhar a boca com pano molhado, gelo moído, entre outros. A verdade é que o paciente não morrerá de fome e sede, mas sim que ele não sente fome e sede porque está morrendo13.

____________________________________________________________________________________
1PESSINI, L. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Loyola, 2004b, p. 204.

2MARTIN, LM. A ética médica diante do paciente terminal: leitura ético-teológica da relação médico-paciente terminal nos códigos brasileiros de ética médica. Aparecida: Editora Santuário, 1999, p.262

3INCA. Cuidados Paliativos. Disponível em: <w1.inca.gov.br/conteudo_view.asp?ID=474>, (acessado em 28/01/2013).

4BEAUCHAMP, TL; CHILDRESS, JF. Princípios de ética biomédica. Trad. Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2002.

5MORITZ, RD, DEICAS, A, ROSSINI, JP, SILVA, NB, LAGO PM, MACHADO FO. Percepção dos profissionais sobre o tratamento no fim da vida, nas unidades de terapia intensiva da Argentina, Brasil e Uruguai. In: Revista Brasileira de  Terapia Intensiva, 2010, 22 (2): 125-132.

6PESSINI, L. A filosofia dos cuidados paliativos: uma resposta diante da obstinação terapêutica. In: BERTACHINI, L.; PESSINI, L. Humanização e cuidados paliativos. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2004a,  p. 181-208. VILLAS-BÔAS, ME. A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro. In: Revista Bioética. 2008, 16 (1).

7CAMPOS, ACL; MATIAS, JEF. Nutrição no paciente terminal. In: URBAN, CA. Bioética Clinica. Rio de Janeiro: Revinter, 2003.

8NICOLA, C. Bioética em Cuidados Paliativos. In: URBAN, CA. Bioética Clinica. Rio de Janeiro: Revinter, 2003.

9PESSINI, L. A filosofia dos cuidados paliativos: uma resposta diante da obstinação terapêutica. In: BERTACHINI, L.; PESSINI, L. Humanização e cuidados paliativos. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2004a,  p. 181-208

10DADALTO, L. Testamento vital. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

12FUHRMAN, MP.; HERMANN, VM. Bridging the continuum: nutrition support in palliative and hospice care. Nutrition in Clinical Practice, vol. 21, 2006, pp. 134-141 .

13GONÇALVES, JASFA. boa morte: Ética no fim da vida. Dissertação de mestrado. Universidade do Porto. Disponível em http://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/22105/3/A%20Boa%20Morte%20%20tica%20no%20Fim%20da%20Vida.pdf, (acessado em 20/02/2013)

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Ibijus


Sobre o autor

Luciana Dadalto

Doutoranda em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG. Mestre em Direito Privado pela PUCMinas. Bacharel em Direito pela PUCMinas. Professora de Direito Civil, Direito Médico, Biodireito e Bioética em cursos de graduação e pós graduação em Belo Horizonte e em Ribeirão Preto.Administradora do site www.testamentovital.com.br. Advogada coordenadora do Departamento de Direito Médico, Odontológico e Hospitalar da Ivan Mercêdo Moreira Sociedade de Advogados.


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