Por Paulo Adyr Dias do Amaral em 17/11/2025 | Direito Tributário | Comentários: 0
Tags: tese do milênio, contribuições de terceiros, IN RFB 2.288/2025, Tema 1.119 do STF, tema 1079 STJ, recuperação tributária, Receita Federal.
Em A Flauta Mágica, de Mozart, o público é conduzido, de propósito, a um equívoco inicial: logo no começo, tudo leva a crer que Sarastro é o vilão – o sacerdote autoritário que “raptou” Pamina – e que a Rainha da Noite é a mãe amorosa e injustiçada, pedindo socorro ao jovem Tamino.
À medida que a história avança, porém, a verdade aparece: Sarastro não é tirano coisa nenhuma; é o guardião da luz, da razão, da sabedoria. Já a Rainha da Noite, com seus discursos inflamados, é a figura do ressentimento, da vingança, da escuridão.
Mozart faz isso de propósito: ele mostra como a narrativa inicial pode estar completamente invertida em relação à verdade.
É exatamente isso que estamos vendo agora no debate em torno da chamada “Tese do Milênio” (contribuições de terceiros), do Tema 1.119 do STF e da IN RFB 2.288/2025.
Nos últimos dias, formou-se uma narrativa mais ou menos assim:
A Receita Federal, com a IN 2.288/2025, aparece como se estivesse “colocando ordem na casa”, corrigindo “excessos” de ações coletivas, supostos “abusos” na habilitação de créditos e suposta “indústria” de teses tributárias.
Em paralelo, muitos passaram a acusar escritórios que trabalharam com a Tese do Milênio de serem “picaretas”, como se tivessem oferecido algo “inexistente” ou “sabidamente inviável”.
Em linguagem de ópera:
Mas, quando a gente acende a luz do Direito – especialmente do Tema 1.119 do STF – a verdade aparece, e os papéis se invertem.
O Tema 1.119 fixou, em síntese, que:
Ou seja: o STF ampliou e fortaleceu a eficácia das decisões coletivas a favor dos substituídos.
O que faz então a IN 2.288/2025?
Entre outras coisas, ao criar o art. 103-A e, em especial, o seu § 1º, ela estabelece que: “o direito creditório do substituído aplica-se somente a fatos geradores posteriores à filiação à associação ou ao ingresso na categoria”, e ainda o condiciona à manutenção dessa condição.
Em termos simples: a Receita pega uma decisão do STF que disse “não exija filiação prévia como condição para o alcance do título coletivo”. E responde: “tudo bem, STF; eu não discuto a legitimidade processual… mas, para efeito de crédito, só vou reconhecer fatos geradores posteriores à filiação”.
Na prática, ela faz exatamente aquilo que não pode fazer:
É como se, no mundo de Mozart, um personagem secundário resolvesse, por conta própria, “editar” o sentido das decisões de Sarastro.
No nosso mundo jurídico, é um órgão administrativo tentando “reescrever” um precedente de repercussão geral do STF.
Aqui está o ponto central da inversão:
Quem parece vir “restaurar a legalidade” está, na verdade, violando a hierarquia normativa e esvaziando um precedente vinculante do Supremo.
Do outro lado, temos os escritórios que trabalharam a oportunidade aberta pelo Tema 1.119 e pelas decisões favoráveis em matéria de contribuições de terceiros, em momento em que:
Esses escritórios:
Em nenhum ordenamento sério se admite que uma mudança posterior de entendimento administrativo transforme em “fraude” ou “picaretagem” aquilo que, à época, era perfeitamente legítimo.
Aqui, de novo, a metáfora da Flauta Mágica encaixa como uma luva:
Por que isso acontece?
Porque, quando o cenário muda – Tema 1.079 restringindo a Tese do Milênio, IN 2.288 criando barreiras, indeferimentos surgindo – muitos contribuintes:
E o alvo mais fácil não é o STF nem a Receita; é o advogado “da esquina”, o escritório que eles conhecem pelo nome.
Em vez de olhar para:
A narrativa pública simplifica: “Se não deu certo, é porque me venderam uma mentira.”.
É o equivalente, na ópera, a Tamino acreditar cegamente na versão da Rainha da Noite nas primeiras cenas, sem passar pelas provas do templo.
Quem não atravessa o caminho da razão, fica refém da primeira narrativa que escuta.
Do ponto de vista jurídico:
Sombra é usar um ato infralegal para:
A injustiça está em atribuir a sombra aos escritórios e a luz à Receita.
Quando, na verdade, a simetria é outra: Os escritórios sérios, que ofertaram a tese dentro da legalidade vigente, cumpriram o papel de Sarastro: guardiões de uma ordem jurídica que vinha se construindo a partir do STF.
A Receita, ao editar o § 1º do art. 103-A da IN 2.055, comporta-se como a Rainha da Noite: sob o discurso sedutor de “combater abusos”, ataca a própria luz do precedente vinculante, tentando restringir pela via administrativa aquilo que foi reconhecido pela via judicial.
A Flauta Mágica nos ensina que:
No debate atual:
Se há algo que o Direito não pode aceitar, é que um ato infralegal “revogue”, na prática, um precedente do Supremo – e que, ainda por cima, se jogue sobre a advocacia séria a culpa por uma mudança de rota que ela não causou, nem podia prever.
Como em Mozart, a tarefa agora é restabelecer quem é quem no palco:
As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Ibijus
Sobre o autor
Professor Adjunto II (Direito Financeiro e Finanças Públicas) da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (no Bacharelado, Mestrado e Doutorado) (2014/2017). Professor Titular III (Direito Tributário) do Ibmec (Graduação e LLM) (2015/2019). Membro do Conselho Estadual de Assuntos Tributários da FEDERAMINAS (Federação das Associações Comerciais e Empresariais do Estado de Minas Gerais – triênio 2016/2019). Pós-Doutor em Direito Público pela Università degli Studi di Messina (Itália – fundada em 1.548 pelo Papa Paulo III). Pós-Doutor em Direito Penal Tributário pela Universidad Nacional de La Matanza – UNLaM. Bacharel, Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Diretor da Associação Brasileira de Direito Tributário – ABRADT. Autor de 13 livros em Direito Tributário e Financeiro, além de 90 artigos publicados no Brasil e no exterior. Advogado.
Método prático para advogar com recuperação judicial e administrativa de tributos
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Especialização Lato Sensu